Peças escritas são muito curiosas pois elas não são propriamente teatro, mas tampouco são como as demais esferas da literatura. A literatura é o espaço do imaterial: o suporte da palavra escrita permite que qualquer situação narrativa aconteça na imaginação do leitor, sem que o escritor precise se preocupar com as possibilidades materiais de concretizar aquelas imagens em um campo real. O teatro, por sua vez, parte da fisicalidade dos corpos, objetos, espaços. Seu limite é o mesmo da própria vida: a gravidade, o tempo, as possibilidades e impossibilidades fisiológicas dos seres. Na literatura, as personagens são desenhadas pelas palavras e ganham vida em toda sua integridade no espaço de imaginação do espectador. No teatro, a ficção é sempre mediada pelo imperativo do real: o espectador convive com a dupla presença do espaço de encenação, e da fabulação; do corpo do ator como pessoa no mundo e da materialização da personagem da trama. É justamente nesse híbrido que se instala a dramaturgia: ela opera tal qual a literatura, em toda sua liberdade de proposição imagética, mas acontece em uma negociação com a sugestão de uma futura encenação da peça. Mesmo que ela nunca seja de fato encenada, sua latência de vir-a-ser teatro modula sua experiência estética enquanto leitura. Mesmo não estando confrontado pela indubitável presença de um corpo vivo, o leitor de uma dramaturgia é atravessado pelas mesmas condições do real que se impõem ao teatro: antes de imaginar as personagens em um quarto, elas são imaginadas em um palco que constrói para si a alegoria – ou experiência – de um quarto.
O teatro é uma linguagem curiosa, pois ela se propõe a criar um espaço de fabulação que é sempre interpelado por evidências do real. Assim, o gênero dramaturgia é essa literatura híbrida que goza das potências infinitas da imaginação imaterial ao mesmo tempo que, ainda que no âmbito da imaginação, projeta a evidência do real que é o palco, a rubrica, o ator. As peças presentes em Mantra Muzak poderiam muito bem terem sido concebidas como narrativas, contos, dimensões extensas de possibilidades de situações sem qualquer compromisso com sua factualidade. Entretanto, o que Mauricio Salles Vasconcelos propõe ao aderir à mídia cênica escrita é justamente o gesto de reanunciar o real, mesmo que sem necessidade alguma de fazê-lo enquanto escritor. O leitor, mesmo imerso na trajetória literária que se constrói unicamente em sua imaginação, é obrigado a lembrar da materialidade da cena, do corpo, da visceralidade fisiológica que a presença humana em chave artística traz consigo. Esse palco virtual que circunda cada peça escrita em Mantra Muzak não é só a sugestão de que tal narrativa pode ser encenada, mas é um testemunho que violentamente rasga e tensiona os limites entre realidade e ficção presentes nas obras. Ao sempre nos confrontar com o devir-teatro das histórias aqui presentes, o autor nos força a reconhecer as entranhas que pulsam em cada personagem, uma vez que cada uma traz consigo o vulto de um possível ator-humano-real que pode vir a enfrentá-las e realizá-las. Novamente, mesmo que essas peças nunca sejam encenadas, a escolha pelo gênero dramaturgia nos obriga a recorrentemente reconhecer a visceralidade fisiológica e humana das figuras que compõem a trama. Penso que desse modo o autor constrói uma literatura que reivindica o que o teatro tem de mais complexo e belo: a necessidade invariável de se dar em meio à própria vida como ela é, em toda sua carne, respiração, gozo e suor.
É interessante o nome Muzak no título da coletânea quando pensamos na patente norte-americana de mesmo nome, criada no início do século passado, dedicada a produzir “música ambiente” para lojas de departamento. São músicas animadas, mas nem tanto; chamativas, mas nem tanto: suficientemente cativantes e imperceptíveis. No imaginário histórico de uma época, elas quase se tornaram tão naturais quanto sons de pássaros e crianças brincando em parques: o plano de fundo orgânico do american dream, que na época surgia como o mais majestoso projeto de qualidade de vida em seu ápice – uma família branca, heterossexual, de classe média, cisgênera, monogâmica, embalada por um mantra sonoro perfeito, passeando pela infinidade de produtos que o capitalismo norte-americano fabril tem a oferecer, comprando eletrodomésticos para concretizarem a vida em sociedade em sua perfeição. Em um panorama histórico, o sonho inabalável do núcleo familiar de bem e suas geladeiras, fogões e televisões gradativamente mostrou seu lado perverso, sedimentado por desigualdade social, de gênero, sexualidade e racialização de pessoas que não condiziam com o fenótipo do ápice social branco. Existe, portanto, em retrospectiva, uma nuance extremamente melancólica que toca nas músicas Muzak: a tentativa de um sonho falido, forjado em violência e desintegrado nuclearmente desde sua origem; a promessa de uma felicidade tão inatingível e seletiva que se torna uma espécie de fantasma, alegoria musical da melancolia do final do século XX. É nessa tensão que se instalam as peças reunidas de Mauricio Salles Vasconcelos: tramas enroscadas no âmbito familiar, de parentes e casais atravessados por um existencialismo frenético. São personagens dilaceradas, ainda que vivas, ebulindo conforme atravessam o cotidiano, negociando seus sonhos, desejos e afetos com o imperativo irrefutável do fracasso, da perda, da frustração e da loucura.
Reunir os textos teatrais sob tal título, como um todo-grande-imersão-Mantra-Muzak já é suficientemente bem sucedido para propor ao leitor a presença da angústia humana ocidental brasileira da virada do final do século XX até então. Entretanto, ao decididamente construir e anunciar tais narrativas enquanto peças em devir, Mauricio crava o gesto visceral de sua proposição estética. Suas personagens, atravessadas por tensões, paixões, sexualidades não normativas, uso de drogas e inquietações humanas, rasgam os limites da imaginação do leitor ao terem sempre que serem pensadas como também atores-pessoas-reais que irão potencialmente concretizá-las em seus corpos. Quase como em um programa performativo, para além de nos trazer histórias, o autor nos força a encarná-las em toda vertigem e fragilidade factual de um corpo. Independentemente de serem ou não encenadas enquanto obras teatrais, sua escrita enquanto possibilidade de peça, bem como as narrativas que nos são colocadas, nos confronta invariavelmente ao mesmo tempo com o existencialismo que assombra o ser consciente de si, em sua efemeridade concreta, dada enquanto matéria finita.
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